O underground invade a Tattooweek
Fumorreu e Trágico usam a Tattoo Week para expor as contradições das grandes convenções
Na edição de 2025 da Tattoo Week SP, esses dois nomes icônicos do underground brasileiro decidiram ocupar o evento de forma afrontosa. Eles alugaram um estande no evento e Trágico se inscreveu na categoria Realismo, não para competir seriamente dentro dos parâmetros tradicionais, mas para criticar deles.
No estande, além da tatuagem inscrita, os artistas também panfletaram um manifesto e escreveram provocações aos estilos comercias. A participação não foi divulgada previamente e só veio a público na semana do evento. O que aconteceu ali foi detalhado depois, em uma live para o Subverso, um dia após o encerramento da convenção.
A Tattoo Week se apresenta como a maior convenção de tatuagem do mundo. Um evento que reúne milhares de pessoas, estúdios, marcas internacionais, competições, palestras e uma estrutura que reflete o auge da profissionalização da tatuagem enquanto indústria.
Mas é justamente aí que começa o conflito.
Padrões normativos
Para uma parcela significativa do movimento underground, esse modelo de convenção não representa a tatuagem enquanto linguagem artística viva, tampouco contempla artistas não convencionais. Pelo contrário: reforça padrões estéticos rígidos, hierarquias de estilos, normativas de gênero e sexualidade, como nos concursos de Miss e Mister Tattoo. E, mais recentemente, normaliza o uso de inteligência artificial na criação de artes, esvaziando o processo humano criativo.
IA, empresários e a morte do processo
Poucos dias após o encerramento da edição de 2025 da Tattoo Week São Paulo, o evento voltou a ser alvo de críticas intensas por conta de sua comunicação visual. A divulgação da Tattoo Week 2026 trouxe uma imagem gerada por inteligência artificial que causou indignação imediata: uma mulher indígena tatuando grafismos em um padre branco, com uma igreja ao fundo.
Mesmo que houvesse alguma “boa intenção” no prompt utilizado para gerar a imagem, o público não conseguiu enxergar isso. A leitura foi majoritariamente negativa. A imagem foi considerada contraditória, ofensiva em múltiplas camadas e sintomática de um problema maior: um evento artístico-humano sendo divulgado por uma estética artificial, carregada de símbolos coloniais mal interpretados.
Após a repercussão negativa, a Tattoo Week publicou um pronunciamento afirmando que a arte havia sido pintada à mão pelo tatuador Cigano. O comunicado, no entanto, omitia o ponto central da crítica: a imagem havia sido gerada por inteligência artificial. Pouco depois, o post original foi apagado das redes oficiais. O próprio artista citado também optou pelo silêncio. Por vergonha ou conveniência, pouco importa. A imagem circulou, foi vista, compartilhada e printada por todos.
Um dos palestrantes convidados da Tattoo Week foi Fabrício Galdino, que, durante sua apresentação, defendeu abertamente o uso de inteligência artificial nos processos criativos dos tatuadores. A IA aparece ali como um atalho criativo e é vendida como evolução, mas na prática, ensina mais sobre como ganhar convenções do que sobre como ser artista.
Ao longo do evento, não foram poucas as pessoas que relataram ter visto diversas tatuagens aparentemente feitas a partir de imagens geradas por IA.
“Cara, eu vi… juro. Eu vi muita tatuagem com cara de arte de inteligência artificial”, contou Fumorreu. “Eu olhava e pensava: mano, essa pessoa não desenhou isso. Não desenhou. E não é nem sobre a aplicação, tá ligado? A aplicação tava impecável — porque é isso que eles avaliam. Só isso. […] Não tem como afirmar com certeza, claro. Mas quem trabalha com arte, quem entende minimamente, reconhece alguns padrões.”
Esse cenário não surpreende quando o próprio evento utiliza inteligência artificial até no banner de divulgação, em vez de contratar um artista para criar algo original. E isso vindo de uma estrutura milionária.
Durante a entrevista, Trágico e Fumorreu criticaram essa postura, que ensina tatuadores a prosperarem rápido dentro do mercado, mas os afasta de um processo artístico real.
“Esses caras tão no topo dando papo pra molecada, tá ligado?”, disse Trágico.
“Não são artistas, presta atenção. Não são artistas. São empresários. Ótimos empresários, com muita visão de negócio. Mas não são artistas.” – completou Fumorreu.
ruptura
“Usar o sistema contra o sistema”
Disse Leco quando perguntei quais foram suas intenções ao participar da tattooweek.
A ideia não surgiu do nada. Um ano antes, Fumorreu tinha feito uma provocação:
“E se a gente for pra Tattoo Week, mas não pra concorrer sério? E se a gente se inscrever no realismo, fizer um realismo todo cagado e escrever ‘essa convenção é uma farsa’?”
Trágico — também conhecido como Leco — ficou obcecado pela ideia. Principalmente porque, naquele momento, estava desenvolvendo o conceito de Realismo Trágico, um estilo que ironiza a obsessão pela perfeição técnica e casa, de forma quase cruel, com a categoria mais valorizada da convenção.
Eles bancaram tudo do próprio bolso, sem apoio e sem patrocínio. Segundo eles, o gesto era pelo movimento, não por retorno institucional.
Tatuagem feia
A tatuagem inscrita já era, por si só, um manifesto.
Leco apresentou uma composição que qualquer pessoa minimamente treinada em realismo tradicional veria como uma afronta técnica. Tudo na aplicação parecia “errado”. E era exatamente esse o ponto.
A obra trazia dois elementos:
– uma pimentinha tatuada na bunda, feita com tinta diluída para criar um efeito envelhecido
– uma imagem do rosto de Jesus em realismo, atropelando a pimenta
Separadas, são tatuagens comuns e populares no Brasil, mas juntas passam a dizer outra coisa.
“É a culpa cristã, né?”, resumiu Leco.
Esse significado existiria mesmo se a tatuagem fosse executada dentro do padrão “perfeito” do realismo. Mas o fato de Jesus ser feito de forma caricata, ironizando diretamente o realismo tradicional, abre uma outra camada de leitura.
Eles sabiam, desde o início, que não ganhariam nada. O objetivo nunca foi o troféu. Foi “cagar no palco deles” e mostrar, para quem comprou ingresso, que a tatuagem underground existe — mesmo quando não tem espaço oficial.
Reações do júri e do público
A reação inicial de muita gente foi quase automática: isso só pode ser uma piada.
E era, mas nem todo mundo entendeu assim.
Teve quem achasse genial mas algumas pessoas liam o panfleto inteiro e ficavam em silêncio, hesitavam em pegar o material e simplesmente iam embora. Esse desconforto apareceu mais de uma vez ao longo do evento.
“Teve uns caras que chegaram em grupo, ficaram olhando pro adesivo”, contou Fumorreu. “Aí eu falava: ‘pega aí, tem coragem?’ O cara só saiu fora, tá ligado?”
Em outro momento, a cena se repetiu.
“O cara ficou um tempão lendo o panfleto, lendo tudo. Aí eu falei: ‘pode pegar’. Ele falou que não queria, virou e vazou.”
Segundo Fumorreu, esse incômodo era porque as pessoas se reconheciam no que estava sendo apontado, e tomavam como uma afronta pessoal.
“Sinceramente a crítica nem é pra eles. Eles fazem tão parte, saca? Eles estão tão fudidos quanto nós”, explicou. “Aquilo é mais para libertar eles. A crítica é pros grandão que tá lá em cima […] A galera que dita no mercado o que é bom, o que não é, o que é um estilo tal, o que não é, entendeu?”
As tatuagens ficaram expostas na vitrine de julgamento. Do lado de fora, tatuadores e público observavam, tentando decifrar as reações. Leco chegou a esperar algum tipo de contato direto com os jurados, nem que fosse uma negativa explícita.
“Eu tava muito na expectativa de ter algum contato com o jurado, sabe? Tipo, eu do lado, o cara vê o trampo e nem que virasse e falasse: ‘Porra, isso não é realismo’.”
“Mano, os caras tavam tão cansados que só riram.”
A recepção acabou sendo dividida, mas longe de hostil. Alguns fecharam a cara. Outros riram. Muitos se aproximaram para elogiar.
“Eu achei que ia ter muito mais hate do que aplauso”, contou Fumorreu.
“Mas teve muita gente falando que isso era necessário.”
Troféus e o esvaziamento da arte
Para Fumorreu, a obsessão por troféus se tornou, para muitos, o ápice de uma carreira que já não comunica nada.
“Uma parede cheia de troféu, pra mim, é vazia. É um trabalho que não passa mensagem nenhuma.”
Em categorias como realismo, o julgamento se resume quase sempre à aplicação perfeita. Não há espaço para criação intuitiva, erro, ruído ou subjetividade.
“Quando você mede o ‘melhor’ de um estilo, você está medindo quem tem a melhor técnica. E só.”
Ele deixa claro que isso não desvaloriza quem ganha troféu, mas questiona o lugar que esse reconhecimento ocupa dentro da tatuagem. Quando o prêmio vira objetivo final, o processo se esvazia.
Underground não cabe em categoria
Durante a live, surgiu a pergunta: e se existisse uma categoria underground dentro dessas convenções?
A resposta foi imediata.
“Se botar categoria underground na Tattoo Week, deixa de ser underground. Ponto. Acabou.”
Para Trágico e Fumorreu, criar critérios, regras e parâmetros é, por definição, matar o que o underground é. O movimento existe justamente na recusa à caixinha, à padronização e à necessidade de validação institucional.
critério invisível
Ao explicar como a convenção funciona por dentro, Leco aponta para o centro do problema: o realismo técnico como ápice absoluto.
“O supra-sumo pra eles é o realismo. É você conseguir reproduzir uma foto na pele de alguém. O que é bom é quem domina luz, sombra e proporção anatômica. Não existe nada além disso.”
Mesmo quando aparecem categorias chamadas de “livres”, elas continuam presas a temas e referências já prontas, como o “Temas Brasileiros”. Na prática, é só mais uma caixinha: uma ideia de Brasil previamente definida, com limites claros do que pode ou não ser considerado aceitável. No fim das contas, o que vale é quem reproduz melhor, não quem cria, arrisca ou diz alguma coisa.
Fumorreu afirma que o problema se agrava quando a própria tecnologia começa a ocupar o lugar do processo.
“Já tem robô fazendo arte. Daqui a pouco vai fazer tatuagem. E aí, qual vai ser o nosso papel? Vai ser a nossa vivência como humano. Se a gente não tá colocando isso na nossa arte, volte cinco casas.”
Leco reforça a ideia.
“Eu bato nessa tecla sempre: é a mensagem que você tá transmitindo com o teu trabalho. O que você quer comunicar. Isso não pode ser abandonado.”
Para eles, ocupar a Tattoo Week não foi sobre ganhar, convencer jurados ou disputar espaço. Foi sobre estar ali publicamente. Mostrar que existem outras formas de pensar, fazer e viver a tatuagem, mesmo dentro de um sistema que não foi feito para comportar isso.
Como o próprio Leco resumiu durante o debate, ocupar esses espaços grandes também é uma forma de dizer a gente existe.
E o underground segue existindo à margem. Em flash days, exposições independentes, feiras. Não disputa escala com as grandes convenções, nem tenta.
Mas a resistência não está só nos eventos. Está no dia a dia. No estúdio, na rua, na produção constante.
O que produzimos não agrada às grandes massas. Marcamos nossa presença do jeito que é possível, sem negociar nossa identidade nem a tradição de ser contracultura.