Na Perspectiva do Monstro
Ficções Somáticas e a Estética do Erro
A pesquisa Na Perspectiva do Monstro: Ficções Somáticas e a Estética do Erro foi iniciada no final de 2023. Produzo nela, uma série de esculturas de corpos monstruosos, surgidos sob a lógica da modificação corporal transexual, trans-humana e pós-gênero. Trabalho a partir de conceitos como o Ciborgue de Donna Haraway e a Contrassexualidade de Paul Preciado, passando por temas como hormonização contrassexual não-binária, autonomia do corpo, autoimagem cuir, tatuagem enquanto marcador de identidade e a estética do erro como terreno de criação. Trata-se de uma investigação que rompe com normas de gênero, que perverte as noções de humanidade e identidade estática, ressoando com a monstruosidade assumida, e, no centro de tudo, uma poética de emancipação e reinvenção.
![Escultura de corpo monstruoso com formas orgânicas e detalhes texturizados em papel machê e tinta de tatuagem.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/tempImageqwTVnN-scaled-e1731437482581.jpg)
![Detalhe de escultura com superfícies disformes e uso de látex, representando um corpo híbrido e desafiador.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/tempImagep9FeBh-768x1024.jpg)
A partir do trabalho de Haraway, vivencio uma identidade politicamente não binária e percebo meu corpo enquanto híbrido natureza-tecnologia, sem subjetividade pura ou natural, sem gênero biológico determinante.
Ê ciborgue de Haraway não pertence nem ao homem, nem à mulher; é uma subjetividade andrógina que se posiciona além da lógica binária. Ê ciborgue não busca pureza ou identidade fixa, mas encontra poder na mestiçagem, na multiplicidade sujamente contraditória. Ao me propor a inventar monstros que existam além do gênero, vejo nessa figura uma emancipação para corpos marginalizados: rompo com o ideal hegemônico de feminilidade ou masculinidade; a monstruosidade é, por essência, agênero. Uma identidade que se desdobra na transgressão do fixo e se constrói na fissura. É uma escolha por viver nas margens e nas sombras do sistema de gênero. Por negar a ilusão do corpo harmônico, do corpo completo. Este monstro não quer ser corrigido.
O monstro-ciborgue que proponho é uma figura política. Ele desafia o regime heterossexual de verdade apontado por Preciado, onde masculino e feminino aparecem como essências opostas que regulam sexualidade e identidade, marginalizando todas as outras expressões de gênero e desejo. O monstro reivindica uma ficção inventiva e libertária em relação às normas identitárias. O corpo monstruoso é maleável; ele representa uma biopolítica de resistência, subvertendo e reimaginando normas de gênero, sexo e prazer. Preciado, influenciado por Foucault, descreve o corpo como um campo de disputa, onde o poder molda a maneira como sentimos e nos relacionamos com o prazer; a subjetividade se constrói através do contexto cultural, tecnológico e biopolítico, sendo moldada e reescrita constantemente. E atravessado por essas constatações, investigo subjetivação, imagem e ressonâncias de um corpo trans não binário em hormonização com testosterona e minha relação em trânsito com a modificação corporal. Esses conceitos reverberam em cada obra, em cada material escolhido, formando um corpo que se desdobra continuamente, em constante metamorfose.
![Detalhe de escultura com relevos texturizados e padrões orgânicos tatuados em tinta, evocando a estética do erro.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/3-683x1024.jpeg)
![Detalhe de escultura com relevos texturizados e padrões orgânicos tatuados em tinta, evocando a estética do erro.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/4-683x1024.jpeg)
Ao falar em ficção somática, sugiro que o corpo, como narrativa fictícia, pode ser inventado e transformado. Ele não é dado imutável, mas campo de possibilidades onde intervenções—tecnológicas, artísticas ou discursivas—geram novos significados e configurações. A ordem colonial hétero-cis-branca projeta a monstruosidade sobre as identidades subjulgadas; arrancando-lhes humanidade, por muito tempo, tentei fugir dessa projeção, buscando tudo que pudesse me aproximar da forma humana. Meu interesse hoje é ratificar minha identidade monstruosa. Deixar meu corpo monstro articular-se como luz no fim do túnel da cisgeneridade e, quem sabe, da própria transgeneridade. Pisotear a farsa da identidade estática—fazer as pazes com a existência em trânsito. Transitar é a constante dessa pesquisa; cada escultura marca um ponto desse caminho, e o erro, a falha, as rachaduras que surgem nessa caminhada, são celebrações dessa trajetória única e dissidente.
Habitar a estética do erro é, portanto, cuir por excelência. Nas fissuras da norma é onde o inacabado e o disforme são celebrados. A falha, ao invés de defeito, torna-se sustentáculo do corpo monstro — um espaço de frutífero que abriga-o em sua complexidade e opacidade, sem necessidade de traduzi-lo ou compreendê-lo totalmente. Falho de forma produtiva. Viver a estética do erro é desafiar o formato e propor um corpo onde a falha seja fundamento de existência, onde o inacabado seja um ato contínuo. A figura monstro não busca ser compreendida, e sim fazer do próprio corpo um manifesto de resistência contra a legibilidade normativa.
Construção
A utilização do látex enquanto pele provoca: o que constitui uma vida monstro e o que ela comunica? Essas perguntas são combustível nessa pesquisa contínua, articulando o corpo como território de ficções e possibilidades, no limiar entre o humano e o alienígena, o andrógino e o mutante. A produção das esculturas segue uma lógica processual Frankenstein, onde a estética do erro, da falha e do desvio da forma humana criam novas criaturas. O látex atua como metáfora da pele enquanto linguagem, uma pele que dialoga com outros corpos ao representar, extrapolar e desobedecer normas de gênero. Assumir com brutal honestidade a construção tecnológica de nossos corpos e tomar para si essa direção criativa é um caminho que endosso. Cada camada, cada textura intencionalmente imperfeita, é um grito de independência.
![Prev Thumb](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/crimes-of-the-future-poster-qxyufquiu5i9.PNG.webp)
No filme Crimes of The Future, os artistas performáticos de Cronenberg tatuam seus órgãos internos num ato radical de experimentação corporal. Transformar os órgãos—e, por consequência, o corpo—em objeto artístico reescreve identidades num campo onde o que é humano já não é suficiente para explicá-las.
![Creative Slider](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/crimes-of-the-future-poster-qxyufquiu5i9.PNG.webp)
![Next Thumb](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/crimes-of-the-future-poster-qxyufquiu5i9.PNG.webp)
Hormônios, tatuagens e procedimentos estéticos não me fazem transitar de mulher para homem, mas de uma ilusão de estabilidade para uma poética da invenção em trânsito. Assim como os artistas do filme tatuam seus órgãos, eu tatuo minhas esculturas, reivindicando autonomia sobre minha pele-língua, expandindo os limites do corpo. Cada tatuagem, cada modificação, é uma inscrição de resistência e um lembrete de que o corpo é uma ficção que construímos e destruímos ao longo da vida.
![“Detalhe de escultura com relevos e tatuagens, apresentando formas fluidas e marcas distintas na superfície.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/5-scaled.jpeg)
![Parte de uma escultura com ilustrações de flores e símbolos em sua superfície, representando uma mistura de inocência e transgressão.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/6-scaled.jpeg)
Meu fazer artístico é o compromisso com a inventividade da minha própria existência—é o desenho do meu gênero fazendo as pazes com seu ciborguismo. Uma desobediência à lógica colonial e cristã que dita as formas de modificar um corpo. Os corpos que crio são monstros produtivos: criaturas marginais descompromissadas com categorias normativas de gênero e identidade, seres contrassexuais rebeldes. Existências que contraproduzem a natureza enquanto ordem simbólica universal e transcultural. Meu próprio corpo é a escultura primordial errante dessa pesquisa. A criação não termina nas esculturas; meu corpo é extensão desse trabalho, é a própria pesquisa viva.
Vidas monstruosas escancaram a artificialidade da performance; o erro se faz caminho de criação. Esse erro, mais que desvio ou falha técnica, é a própria potência criativa. Esculpir um corpo disforme e modificado é alcançar o ponto de ruptura que permite tanto a transformação da definição de humano quanto o florescimento de subjetividades sujas e inconformáveis. Errar me permite ficcionalizar um futuro que se faz presente através do auto exercício de invenção, distanciando-se da linearidade do tempo ocidental. Em uma era biopolítica predadora e totalitária, abraçar o erro é, também, rejeitar a transparência; rejeitar a legibilidade colonial cisnormativa sobre a identidade. Como aponta Glissant, ser compreendido é ser reduzido. A beleza da falha é a sua infinitude.
![Escultura ovalada com textura orgânica, protuberâncias e uma seringa presa à superfície.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/7-scaled.jpeg)
Ai pikadinha boa!
(2023) 44x34x12cm / Isopor, papel machê, tinta spray, tinta de tatuagem e seringa
![Painel escultórico com ilustrações e padrões tribais que misturam símbolos contemporâneos e elementos subversivos.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/8-scaled.jpeg)
Erro-criatura
(2024) 130x82x11cm / Madeira, retalhos de tecido, argamassa, pasta de madeira, papel machê, acrílica, tinta de tatuagem e látex
![Escultura alongada com extremidades pontiagudas e inscrições em sua superfície, evocando formas híbridas e não-humanas.](https://subverso.blog/wp-content/uploads/2024/11/9-scaled.jpeg)
Quantas memórias guardam um monstro?
(2023) 163x70x12cm / Isopor, gesso, látex e tatuagem